sábado, 12 de março de 2016
terça-feira, 8 de março de 2016
A revelação de Deus
Há dois modos de se fazer teologia, e isto depende de como se aborda a Escritura. A teologia, necessariamente, precisa ser a Teologia da Bíblia, porém, há duas maneiras de nos aproximarmos da Escritura: 1) com o pressuposto da fé; 2) com o pressuposto da dúvida. As duas maneiras têm sido adotadas ao longo da História. Quem se aproxima com o pressuposto da fé entende que a Escritura é inspirada, infalível e inerrante em tudo o que ela ensina. Esse estudioso não se preocupará primariamente com questões a respeito de fontes, desenvolvimento de tradições, questionamento de datas ou autorias. Ele procurará entender o ensino da Bíblia e se submeterá a ele, porque acredita ser verdadeiro e normativo. Além disso, entende que, ao longo dos séculos, a Escritura já deu suficientes provas de sua autenticidade. Essa posição não significa estar fechado para discussões, mas que não se está disposto a abandonar a fé como pressuposto fundamental da teologia. Anselmo, que foi Arcebispo da Cantuária (1033-1109), dizia que teologia é a fé em busca de compreensão.3 E, de fato, não se estuda teologia necessariamente para questionar a fé - embora algumas vezes ela precise de questionamento -, mas para desenvolver e fundamentar a fé.4 Geralmente, aqueles que adotam essa perspectiva são chamados de “conservadores”, e, às vezes, até de “fundamentalistas”, o que nem sempre é um rótulo adequado. E possível identificar uma linha histórica de estudiosos desse tipo, desde os dias atuais até o tempo dos apóstolos. Recentemente, tem surgido uma nova maneira de abordar a Escritura. Trata-se do que chamamos aqui de pressuposto da dúvida. Especialmente a partir do Iluminismo (séc. 17), e com as descobertas científicas dos séculos seguintes, muitos estudiosos começaram a abordar a Bíblia como um livro meramente histórico, que precisava ser analisado de uma perspectiva científica. Já não se aceitava mais o pressuposto da fé. A partir daí, começou-se a questionar as narrativas bíblicas, principalmente as que narram acontecimentos sobrenaturais. Um grande esforço foi feito para recuperar o Jesus histórico que teria sido distorcido pelos evangelhos. A autoria mosaica do Pentateuco foi rejeitada e, em seu lugar, foi desenvolvida uma complexa teoria de fontes. Assim, o Pentateuco foi dividido em diversas ramificações que seguiriam fontes anteriores e que teriam sido compiladas por alguém depois do Exílio. Essa abordagem ficou conhecida como Crítica das Fontes. Posteriormente, falou-se em crítica das formas, crítica das tradições, crítica da redação, etc. O que todas essas abordagens têm em comum é a perspectiva de crítica da Escritura sem respeito ao seu caráter inspirado. Esse pressuposto de abordagem não rejeita o Cristianismo, mas não está disposto a aceitar que tudo o que está registrado na Bíblia é verdadeiro. Depois de tantos estudos e especulações, no entendimento desses estudiosos, pouca coisa na Escritura permanece como verdadeira e acima de qualquer suspeita. Os adeptos dessa abordagem são geralmente rotulados de “liberais”. Como já foi dito, essa abordagem começou a ser feita durante a época do Iluminismo, e ela permanece até hoje como a forma mais predominante nos meios acadêmicos teológicos do mundo todo, embora com muitas variações. Não é o propósito desta obra discutir profundamente esta questão, e o estudante mais interessado deverá se preocupar em pesquisar outras fontes. Justifica-se a opção pela primeira forma de abordagem por ser a forma histórica mais praticada, a que não violenta os escritos bíblicos e a que mantém as verdades essenciais do Cristianismo. O pressuposto da dúvida, embora tenha fornecido alguma ajuda para o aprofundamento acadêmico, tem causado esfacelamento no Cristianismo mundial ao retirar a sua base de fé e comprometer o ensino bíblico sobre a Redenção e, assim, demolindo a própria estrutura do Cristianismo. Além disso, é necessário que se esclareça que todas as teorias racionalistas permanecem apenas como teorias, carecendo de provas documentais. Amplo trabalho apologético (defesa da fé) tem sido feito pelos conservadores no sentido de rebater as teorias racionalistas. Na verdade, até hoje não há razões suficientes para se abandonar o pressuposto de fé na integridade das Escrituras.
Propósito e progressividade
Uma vez que a integridade da Escritura é assumida, é necessário entender como ela surgiu e chegou até nós. Neste capítulo, que talvez seja o mais “técnico” do livro, veremos muito resumidamente como isso aconteceu. A revelação especial é o ato divino pelo qual Deus se torna conhecido de modo redentor ao homem decaído. Sem a revelação, Deus seria eternamente o absconditus (escondido), pois a natureza de Deus é tão diferente da dos homens, que os homens jamais conseguiriam descobrir qualquer coisa de Deus por si mesmos. Talvez, por essa razão, Paulo faça eco às palavras do Salmo 14 ao dizer: “Não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3,11; SI 14.2). Isso parece contraditório diante do que se vê no mundo, onde as pessoas, quase que freneticamente, procuram Deus para resolver os seus problemas. Porém, esse é justamente o problema, pois, no fundo, as pessoas não estão buscando Deus, mas simplesmente buscando algo dele. A rotina comum do ser humano é fugir de Deus, como Adão e Eva, que se esconderam entre as árvores do jardim (Gn 3.8). E, nessa mesma cena, vemos Deus procurando o casal e chamando-o para restaurar o relacionamento. Isso é revelação, pois se trata de um movimento de Deus em direção ao homem, dando-se a conhecer, revelando o seu plano redentor com o objetivo de restaurá-lo. A revelação especial, que deve ser distinguida da revelação geral,5 concentra-se na revelação do plano redentor de Deus. Adão, antes da queda recebeu revelação especial não- redentora, mas, depois da queda, pode-se dizer que a revelação especial de Deus é uma revelação com propósitos redentores. Portanto, é possível identificar a revelação especial com a Bíblia. Um aspecto importante da revelação especial é que ela é progressiva. O se quer dizer com isso é que a Escritura não foi revelada e registrada num único momento, mas Deus usou diversas pessoas, em diversas épocas, para registrar, parte por parte, a revelação que ele ia fazendo de si mesmo. De certo modo, Gênesis 1.1 é o resumo de toda a Bíblia, pois contém embrionariamente tudo o que foi explanado depois. Ao longo da História, Deus foi oferecendo à humanidade mais conhecimento de si mesmo. Disso decorre que é preciso entender o significado como um todo, em toda a Escritura, entendendo que muitas coisas, que não estão claras a princípio, serão esclarecidas depois. Isso pode ser visto nas várias ministrações da aliança divina, que embora seja uma só, foi renovada em momentos subseqüentes, e elementos novos foram acrescentados, revelando mais do caráter divino e do seu plano redentor.
Modos de revelação
O autor aos Hebreus diz: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1,2). Mesmo antes de a Bíblia ter sido escrita, Deus já se revelava de modo especial para o seu povo. Dois modos muito usados por Deus na antiguidade foram: a teofania e a profecia.
Revelação por teofania
Teofania, que literalmente significa “manifestação de Deus”, refere-se aos aparecimentos de Deus, bem como as demonstrações fantásticas do seu poder. A teofania foi predominante até o período mosaico. Deus se manifestou a homens como Adão (Gn 2.15-17, 22,23; 3.8), Abraão (Gn 12.2; 28.13) e, especialmente, Moisés. A Bíblia afirma que, depois de Moisés, esta não seria mais a maneira “oficial” de revelação (Dt 34.10), embora alguns homens do Antigo Testamento tenham recebido teofanias, como Elias, por exemplo. A característica principal da teofania é o apelo ao físico, ao sensitivo. Deus tomava a forma de um anjo ou de um homem e podia ser visto, ouvido e até tocado. Evidentemente, essas eram formas temporárias, assumidas por Deus para se comunicar com o ser humano.
Revelação por profecia
A partir de Moisés, Deus passou a usar mais amplamente um novo modo de revelação. Ele começou a se revelar por meio de profecia (Nm 12.6-8). A revelação por profecia é um modo mais indireto de revelação. O profeta recebia algo de Deus, porém por meio de um sonho ou uma visão. Então, o profeta tinha a responsabilidade de transmitir ao povo o que ele tinha visto desse modo. Como sempre havia risco de falsificação, Deus estabeleceu testes para confirmar o profeta e a profecia. Esses testes eram basicamente dois, o da veracidade do fato profetizado (Dt 18.20-22) e o da conformidade com a Palavra escrita (Dt 13.1-5). O tempo predominante dos profetas se estende da morte de Moisés até João Batista (Mt 11.13). A função básica do profeta era ser um porta-voz de Deus. Por isso, geralmente o profeta começava a sua mensagem com a seguinte expressão: “Assim diz o Senhor...”. Isso indica que o próprio Deus colocava as palavras na boca dos profetas (Jr 1.7; Is 51.14; Êx 4.10-12; Dt 18.18). Um detalhe que não pode ser esquecido é o caráter orgânico da recepção e da entrega da mensagem profética. Os profetas não falavam em transe, mas usavam os seus próprios recursos, qualidades e talentos para transmitir a mensagem de Deus. Esta era, de certo modo, acomodada à personalidade do profeta.
Revelação na pessoa do Filho
Jesus Cristo é o clímax de toda revelação de Deus (Hb 1.1,2). Nada antes ou depois dele fala mais, ou melhor, do que ele sobre Deus. Aqui, também podemos ver o caráter progressivo da revelação divina. Cristo é a expressão máxima do ser de Deus. Ele é o próprio Emanuel, o Deus conosco. Ele é o Deus manifestado na carne, pois nele habita toda a plenitude da divindade (Cl 2.9). Jesus não é uma teofania nos moldes do Antigo Testamento, pois não é uma manifestação temporária de Deus. Ele é a manifestação plena e eterna de Deus. Ele é, e para sempre será, o Deus-homem. Na pessoa de Jesus, estava o ápice da revelação. Ele próprio costumava dizer: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Entretanto, só em algumas ocasiões ele se descortinou mais amplamente aos olhos humanos (Lc 9.29). Durante todo o seu ministério terreno permaneceu esvaziado de algumas de suas prerrogativas divinas (Jo 17.5; Fp 2.5-8), carregando com alegria o fardo dos homens e se submetendo a uma vida de servidão. Porém, seus milagres, suas palavras e, especialmente, sua presença, foram a maior demonstração de Deus para o mundo, E sua morte na cruz foi a grande prova do amor desse Deus (Rm 5.8).
0 registro da revelação - Inspiração
Como diz a Bíblia, Deus se revelou de muitas maneiras; porém, houve um processo pelo qual esta revelação foi registrada, ou seja, escrita e preservada nas páginas da Escritura Sagrada. Na revelação de Deus, há o momento do ato propriamente dito em que Deus revelou algo de si mesmo. Esse ato é uma tarefa exclusiva de Deus. A inspiração é o momento em que essa revelação foi registrada. O registro é uma tarefa tanto divina como humana. Inspiração é a influência divina sobre os escritores da Bíblia a fim de preservá- los de erros, e para que eles registrassem com toda a fidelidade os acontecimentos revelatórios de Deus e mesmo os presenciados pelos escritores (boa parte dos evangelhos e de Atos, por exemplo). Em alguns casos, como nos salmos, o ato da revelação coincidiu com a escrituração, pois, no momento em que o salmista meditava sobre algum tema, tomava a pena para escrever e acontecia simultaneamente a revelação e o registro. Isso pode ser visto também nas epístolas. Porém, em outros casos, houve um intervalo entre o ato divino da revelação e sua escrituração, como por exemplo, quando o profeta recebia a visão, e só a registrava posteriormente. De qualquer modo, todo o processo, desde o ato revelatório até o momento da escrituração é revelação de Deus. A inspiração não é uma atividade à parte da revelação. Fazemos essa distinção apenas para que possamos entender os dois momentos, que às vezes ocorrem juntos, e às vezes separados.
Fatores que contribuíram para o registro
É perfeitamente possível que alguns fatores tenham contribuído para o ato de registrar a revelação. Porém, isso não anula e nem torna desnecessária a atuação divina. Os principais fatores que contribuíram para o registro da revelação, especialmente nos registros posteriores aos acontecimentos, foram a tradição oral e a tradição escrita. A tradição oral foi muitas vezes uma intermediária entre os acontecimentos antigos e o registro inspirado. A tradição oral pode ter tido, um papel muito importante antes da invenção da escrita. Histórias que passavam de pai para filho podiam passar às gerações subseqüentes importantes revelações de Deus. E provável que Adão tenha transmitido revelações que ele havia recebido diretamente de Deus a seus filhos, e estes às gerações seguintes. Desse modo, o conhecimento a respeito do Jardim do Éden, da expulsão do Jardim, da torre de Babel, do Dilúvio, provavelmente foi transmitido de pai para filho, tendo assim chegado até Moisés, que escreveu o Pentateuco (Js 4.6, 21). Isso explicaria o fato de haver relatos antigos em outras culturas primitivas, que são semelhantes aos relatos bíblicos da criação e do dilúvio. E importante, porém, que seja observado que essas tradições podem, muitas vezes, ter sido corrompidas ao longo da História. De qualquer modo, isso não significa que Moisés e os outros escritores bíblicos tenham feito os seus registros sobre a base exclusiva dessas tradições. É possível que as tradições tenham colaborado, mas foi a inspiração divina que garantiu que fosse registrada a pura e exclusiva verdade divina. Quanto à tradição escrita, sabe-se que há muitos escritos antigos que não são bíblicos, mas que eram tidos em grande consideração e, por certo, continham dados históricos bastante precisos. Esses livros podem ter sido usados como ajuda no processo de registro da Escritura. São exemplos bem claros disso os seguintes: o Livro das Guerras do S e n h o r (Nm 21.14), o Livro dos Justos (Js 10.13; 2Sm 1.18), o Livro das Crônicas de Samuel, o vidente; Natã, o vidente; e Gade, o vidente (lCr 29.29), o Livro da História de Salomão (lRs 11.41), o Livro da História de Semaías, o profeta e de Ido, o vidente (2Cr 12,15). Nenhum desses livros existe mais, mas eles foram úteis no registro da revelação de Deus,
Um excelente exemplo do uso de tradições escritas e orais para o registro da revelação de Deus vem do Novo Testamento, mais precisamente dos escritos de Lucas! Ele escreve: “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.1-4). Lucas diz claramente que tinha conhecimento de outros escritos que relatavam a vida de Jesus, e que fez uma longa e acurada pesquisa histórica para relatar os fatos. Isso em hipótese alguma tornou desnecessária a inspiração, mas a pesquisa de Lucas transparece no texto, pois, de fato, Lucas é o que tem mais detalhes da vida de Jesus, especialmente do seu nascimento e infância.
0 processo de seleção
Nem toda revelação de Deus foi registrada. Deus superintendeu todo o processo de seleção, para que fosse guardado para a posteridade o que ele julgou mais importante. Grandes porções de revelação divina se perderam ao longo da História. Possivelmente fossem revelações apropriadas para uma determinada época, mas que Deus não julgou relevantes para a posteridade (IR 4.32; Nm 11.26-29; lRs 22.5-28; Jr 36.1-3, 27-28; Jo 20.30-31; 21.25). Pelo menos duas das cartas do apóstolo Paulo também se perderam. Ele diz ter escrito uma carta anterior aos Coríntios (ICo 5.9) e outra para a igreja de Laodicéia (Cl 4.16). Possivelmente elas fossem aplicáveis apenas à situação dessas igrejas, ou quem sabe, muito semelhantes a outras cartas de Paulo. O fato é que não temos como saber o motivo de o Espírito não ter preservado essas cartas para a posteridade. Só podemos dizer que Deus, no seu processo de seleção, não julgou que elas, assim como muitas outras revelações que não chegaram até nós, fossem necessárias.
Evidência bíblica da inspiração
As principais evidências da inspiração da Bíblia são internas, ou seja, provêm da própria Bíblia. A Bíblia reclama para si a inspiração divina: “Toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3.16), disse o apóstolo Paulo. Pedro diz com relação aos escritores bíblicos: “Homens [santos] de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). Os escritores do Antigo Testamento tinham a convicção de que escreviam a Palavra de Deus (Dt 4.2; Am 3.7). O Novo Testamento claramente reconhece a autoridade divina do Antigo Testamento em todas as citações que faz dele, e na consciência de inspiração de seus próprios autores (Jo 20.30,31; At 4.25; 7.37,38; 28.25,26; ICo 2.13; 7.10,12,17,40; 2Co 13.13; G13.8; lTs 2.13; 2Tm 3.16,17; Hb 1.1; Tg 4.5; IPe 1.12; 2Pe 1.19-21). Jesus deu testemunho de que a Escritura do Antigo Testamento era a Palavra de Deus (Mt 5.17-20; Jo 10.33-36; Mt 10.19,20; Jo 16.7,13). Além disso, os escritores do Novo Testamento demonstram ter consciência da inspiração dos outros escritores do Novo Testamento (lTm 5.18; Lc 10.7; 2Pe 3.16). Do mesmo modo, há evidências externas da inspiração da Bíblia, e quanto a isso existem muitos argumentos. Por exemplo, a credibilidade da Bíblia; suas histórias têm sido comprovadas cientificamente como verdadeiras; as descobertas arqueológicas não conseguem provar que a Bíblia esteja errada, ao contrário a confirmam. A sobriedade das Escrituras é outro argumento em favor de sua inspiração; apesar de ser um livro tão antigo, ele não contém nenhum absurdo; todos os livros religiosos antigos dos chineses, dos árabes, dos persas, dos hindus, dos gregos, etc., estão cheios de superstições e erros históricos, geográficos e científicos; a Bíblia, porém, não afirma absurdos sobre o sol, a terra, ou as estrelas como aqueles livros ensinam, ao contrário, seus ensinamentos são precisos (Jó 26.7; SI 135.7; Ec 1.7; Is 40.22). O mesmo pode ser dito de sua coerência e unidade. E difícil imaginar um livro escrito por mais de quarenta autores diferentes num espaço de mais de 1.500 anos, que conte uma história homogênea, com começo, meio e fim. A Bíblia é esse livro.
Teorias a respeito da inspiração
Dissemos que a inspiração é uma obra divina que conta com a participação humana. Uma das coisas mais difíceis de explicar é justamente esse relacionamento entre o aspecto divino e o aspecto humano na inspiração. Qual é a função de cada parte? Algumas teorias foram formuladas a respeito desse processo.
Inspiração mecânica
Essa teoria concebe o ato da inspiração como um tipo de ditado divino. Desse modo, Deus teria ditado literalmente todas as palavras que foram registradas. Ao homem não coube qualquer participação emocional ou inteligente na obra. Ele foi apenas um instrumento, praticamente inanimado, que Deus usou para registrar a sua Palavra. Essa teoria lembra um pouco a idéia espírita da “psicografia”. Ela torna a Bíblia um livro totalmente divino, um tipo de “telegrama celestial”. A principal falha dessa teoria pode ser verificada ao se observar que a Bíblia não tem uma uniformidade literária. E difícil conciliar a idéia de ditado divino com a percepção de que há aspectos variados e estilos pessoais na Bíblia. Se tudo tivesse sido “ditado”, deveria haver uma uniformidade de estilo, o que não ocorre. Geralmente, os estudiosos rotulados de “fundamentalistas” advogam essa teoria. Os “fundamentalistas” são os mais radicais na defesa do conservadorismo bíblico. A intenção é boa, mas para evitar qualquer possibilidade de erro, eles concebem a inspiração como um ditado. Assim, a Bíblia seria totalmente divina. Entretanto, essa teoria não nos parece fazer justiça ao caráter literário da Bíblia.
Inspiração mental
Essa teoria é praticamente o oposto da teoria da inspiração mecânica. Muitos autores que se dizem ortodoxos defendem a idéia de que os pensamentos dos autores foram inspirados, mas que eles foram livres para registrar as suas idéias. A inspiração mental advoga inspiração apenas dos conceitos e não das palavras. Essa idéia encontra maior aceitação no liberalismo teológico. Uma vez que os teólogos liberais têm dificuldades para acreditar que Deus se revelou por meio de atos e principalmente de palavras, eles preferem pensar que o autor teve um tipo de “elevação” em seu raciocínio, que, então, pode ser considerado inspirado. Essa idéia elimina completamente a noção de uma ação direta do Espírito sobre os homens na produção dos livros da Bíblia. O autor bíblico seria inspirado como qualquer outro autor o pode ser na composição de uma poesia ou de uma música. Desse modo, Deus não é o autor da Bíblia, ele apenas é a fonte da vida dos autores bíblicos que falaram, com palavras imperfeitas, o que vem de Deus. No conceito mental de inspiração, a Bíblia está condicionada à cultura de cada povo, e às vezes não passa do registro da experiência religiosa de um povo numa determinada situação. Porém, pode haver momentos em que o escritor elevou-se acima de si mesmo, tendo produzido algo que pode ser considerado divino. Nesse sentido, às vezes os partidários do liberalismo dizem que só algumas partes da Bíblia seriam a “pura” Palavra, e o restante palavra de homens. Daí o método “desrespeitoso” com que eles abordam a Bíblia, ainda que prefiram dizer “científico”, procurando aqui ou ali indicações de imprecisões ou pistas que os remetam a outras situações históricas, que consideram mais importantes e dignas de crédito do que o que a Bíblia relata. Essa teoria não faz justiça ao que a Bíblia representa para a fé cristã.
Inspiração dinâmica ou orgânica
Essa teoria diz que a Bíblia é ao mesmo tempo divina e humana. O Espírito Santo usou homens como organismos vivos e não como meras máquinas. Deus não ditou palavras para serem escritas, e nem simplesmente os homens tiveram “elevações” que os levaram a fazer registros. Deus agiu no ser humano usando todos os recursos pessoais, superintendendo todo o processo, de modo a garantir a veracidade absoluta dos escritos. Assim, esses escritos podem ser considerados humanos, porque foram produzidos por homens, e também divinos, na medida em que eles foram orientados pelo Espírito Santo. O Espírito usou um homem da corte como Isaías, um boiadeiro como Amós, um músico como Davi, um sábio como Salomão, um general como Josué, um homem formado na corte egípcia como Moisés, um pescador como Pedro, um erudito como Paulo, um médico como Lucas ou um cobrador de impostos como Mateus. Os estilos podem ser diferentes, mas o resultado final é o mesmo. O Espírito fez uso das faculdades humanas, adequando-as, para que o produto final, embora contendo traços do perfil humano, fosse a exata expressão da vontade de Deus. Deus usou os recursos humanos, como por exemplo, a capacidade de pesquisa, o raciocínio, a arte ou a musicalidade de uma pessoa, mas, superintendeu todo o processo a fim de que a sua vontade fosse expressamente revelada. Há uma idéia de cooperação, pois Deus age no homem, dirigindo-o, controlando-o, como que energizando-o, de tal modo que, como seu instrumento, ele fica acima de si mesmo, pois escreve algo que nunca conseguiria sozinho. Deus fala a mesma coisa de maneira diferente e por autores diferentes. O produto final é a sua palavra inspirada e inerrante. Essa é a concepção conservadora de inspiração. Ela evita os extremos das duas anteriores, e faz justiça ao ensino e ao caráter das Escrituras.
A inerrância da Escritura
Quando se diz que a Bíblia é inerrante, isso quer dizer que em tudo o que a Bíblia ensina, seja religioso, moral, social ou físico, ela é absolutamente verdadeira e livre de erros (SI 119.142,160; Pv 30.5,6; Mt 5.17-20; Jo 10.34,35; 17.17). Isso não significa que a Escritura diga toda a verdade sobre tudo o que ensina, mas que em tudo o que ensina ela diz a verdade. Muitos defendem uma inerrância limitada (inspiração parcial). Desse modo, a Escritura seria infalível apenas nas questões de fé e prática no que diz respeito ã salvação, e nas demais poderia ter falhas. Porém, como acreditar que ela possa falar a verdade sobre um assunto e mentir sobre outro? Além disso, desse modo, a base histórica da salvação poderia ser retirada (2Tm 3.16; SI 12.6; SI 119.96; Rm 15.4). A inspiração da Bíblia não exige que ela use linguagem científica em suas afirmações. A linguagem da Bíblia é a linguagem do homem comum. Nesse sentido, a Bíblia diz que o Sol gira ao redor da terra, que o vento sopra, e outras afirmações fenomenológicas, ou seja, que podem ser vistas da perspectiva comum. Deve ser entendido que a Bíblia não pretende ser um compêndio de química, física ou geografia, e, portanto, ela não tem necessidade de empregar as linguagens próprias dessas ciências, A inerrância também não exige uma estrita conformidade com as regras da gramática. Aos melhores escritores é permitido “errar” em troca da comunicação. O próprio uso de figuras de linguagem, como a hipérbole (exageros), a sinédoque (o menor pelo maior) e a metonímia (um nome por outro), não compromete a doutrina da inerrância. No contexto da inerrância, os gêneros literários da Bíblia, como o poético ou o apocalíptico, precisam ser entendidos a partir de suas peculiaridades. As imagens fabulosas e fantasiosas são condicionadas ao seu próprio gênero, e devem ser consideradas a partir de sua interpretação, e não da perspectiva literal. O fato de a Bíblia não dar explicações científicas completas sobre geografia ou geologia não implica que haja alguma imprecisão. Esse seria o caso se as informações fossem falsas, mas se são limitadas, ainda assim são verdadeiras. Nem mesmo as citações imprecisas da Escritura do Antigo Testamento no Novo Testamento podem ser consideradas como erros. Quando o Antigo Testamento era citado, era necessário que ele fosse traduzido, e toda tradução envolve muitas variantes. Além disso, citações livres sempre fizeram parte da produção literária antiga. Do mesmo modo, não precisamos que as palavras de Jesus, conforme foram registradas na Escritura pelos evangelistas, contenham a ipsissima verba (palavras exatas), mas a ipsissima vox (voz exata). Ou seja, o que importa é o significado preciso, e não necessariamente, as palavras exatas. Os apóstolos registraram fielmente o que Jesus ensinou, mas precisa ser lembrado que muitas palavras de Jesus foram ditas em aramaico e os evangelhos foram escritos em grego, portanto,sempre houve necessidade de adaptações. Do mesmo modo, as palavras de Pedro, de Paulo, ou dos demais apóstolos, quando foram registradas por Lucas, por exemplo, não foram necessariamente citações literais dos seus sermões, pois é compreensível que Lucas tenha feito resumos dessas preleções; no entanto, elas representam perfeitamente o significado pretendido pelos apóstolos. A inerrância também não exige exatidão nos números. Quando lemos que cinco mil pessoas estavam presentes num determinado evento, trata-se de um valor aproximado, mas não há necessidade de que se conte uma por uma. Geralmente é apontado como erró o fato de um evangelista dizer que havia uma pessoa numa determinada casa, enquanto que o outro evangelista diz que havia duas. Muitas coisas poderiam explicar essa aparente divergência. Os dois poderiam não ter contado as pessoas no mesmo momento, ou cada um registrou o que viu num determinado momento, o que não implica necessariamente num erro. Finalmente, deve ser entendido que a inerrância se refere apenas aos autógrafos.7 Quanto ao argumento de que, se somente eram inerrantes os autógrafos originais, e nenhum deles existe mais, falar em inerrância não tem muito sentido, respondemos que, de fato não temos mais os originais, porém, pela comparação entre todas as cópias (variantes), pode-se concluir que as cópias concordam em 99% de tudo o que elas tratam, e nenhum caso sério de doutrina seria afetado pelas variantes. Além do mais, se o Espírito Santo inspirou os escritos, ele não poderia preservar com fidelidade o que estava escrito neles? Podemos concluir que, apesar de todos os seus esforços, os críticos não têm conseguido provar que a Bíblia contenha erros.
A suficiência da Escritura
Com relação ao tema da suficiência da Escritura, é preciso entender que, na fé reformada, somente a Escritura é a regra de fé e prática. Não há outra fonte na qual o cristão possa encontrar orientações infalíveis para a sua vida. A tradição, embora considerada na teologia, não pode ser comparada com a Escritura. Uma pergunta que normalmente surge quando se pensa em suficiência da Escritura é: “Ainda há revelação divina hoje?” Nossa posição é que não há mais revelações de Deus hoje, pelo menos não em pé de igualdade com a Bíblia. Entretanto, deve ser dito que a revelação de Deus continua hoje. Deus se revelou na criação, e essa criação continua apontando para Deus. A providência, que é a continuação da criação, ou seja, a maneira como ele dirige a História e o mundo, também o revela, Porém, isso não quer dizer que exista uma “nova” revelação de Deus. Trata-se da mesma revelação do início, porém sempre sendo percebida de formas diferentes. A Escritura também é a mesma, mas cada vez que vamos até ela descobrimos coisas novas, em forma de aplicações diferentes para a nossa vida. Deus continua se revelando, portanto, por meio da criação (revelação geral) e por meio da Escritura (revelação especial). Essa última é a principal fonte de conhecimento, especialmente da salvação. Embora cada parte da Bíblia tenha sido escrita numa determinada época, ela nunca esteve limitada ao tempo. De fato, Deus se revelou no passado, mas a mensagem continua significativa para as pessoas de hoje e de sempre. Deus é o mesmo e sua Palavra também. A mesma denúncia do pecado e o mesmo chamado ao arrependimento dirigido às pessoas dos tempos bíblicos vale para hoje. Embora tenha havido muito progresso no mundo, as pessoas ainda são as mesmas e o pecado ainda é o mesmo, pois ele continua dominando a sociedade. Do mesmo modo, as necessidades são as mesmas, assim como a solução. Desde a sua fundação, a Igreja Católica Romana sustenta outra fonte de autoridade em pé de igualdade com a Escritura: A tradição. O catolicismo entende que a igreja deu origem à Bíblia, e não que a Bíblia tenha dado origem à igreja, e, portanto, das duas, a igreja tem a prioridade. Essa é a base para a defesa de muitas doutrinas que foram criadas pelos concílios, ainda que não tenham embasamento escriturístico. A Reforma repudiou a teoria da dupla autoridade. No pensamento reformado, a Escritura tem a primazia. Esta questão de outra fonte de autoridade continua sendo um problema nos dias atuais, não apenas para Roma, mas também para os evangélicos. E nem é preciso pensar em casos extremos como o dos mórmons, que sustentam outro livro como fonte de autoridade, pois o subjetivismo evangélico coloca a autoridade no “Deus me falou”. As vezes, quando crentes conservadores dizem que nada além da Bíblia é necessário para o crescimento espiritual, eles são taxados de “frios” e insensíveis à atuação do Espírito. Porém, é a própria Bíblia quem afirma essa suficiência. Paulo escreveu a Timóteo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). De acordo com essa passagem, tudo o que uma pessoa precisa para atingir o nível espiritual máximo nesta vida pode ser encontrado na Escritura. Portanto, a Escritura é suficiente.
Todas essas considerações devem levar o estudante de teologia a uma atitude de reverência para com a Bíblia. Não podemos nos aproximar dela como juizes, e sim como servos. Estudar a Escritura precisa ser fonte de vida devocional e aprimoramento do relacionamento espiritual com Deus. O Deus da Escritura é o Deus que deseja estreitar o relacionamento da Aliança com o seu povo. Ele se revelou nessas antigas páginas porque deseja que o conheçamos melhor, e para que o amemos com mais intensidade. Ao estudarmos essas “sagradas letras”, podemos ter a certeza de que estamos nos aprofundando em algo não apenas sagrado, mas confiável, e que pode aumentar a nossa sabedoria, o nosso vigor espiritual e a nossa esperança.
Fonte: Leandro Lima - Razão da esperança -Teologia para hoje.
Fonte: Leandro Lima - Razão da esperança -Teologia para hoje.
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